O Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas assenta os seus mais profundos alicerces no Renascimento, quando alguém – muito provavelmente Francisco d’Ollanda – decidiu reunir em torno da antiga Ermida de São Miguel um apreciável conjunto de monumentos epigráficos encontrados por entre as ruínas romanas ainda então visíveis no local.
Mais recentemente, em 1955, a Câmara Municipal de Sintra tentou uma experiência inovadora para o seu tempo: a construção, em plena zona rural, de um pequeno núcleo museológico que permitisse voltar a reunir, em Odrinhas, as antiguidades entretanto dispersas, além de outras mais recentemente detectadas.
O actual Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, aberto ao público em 1999, é um projecto de arquitectura de Alberto Castro Nunes & António Maria Braga com a consultoria de Léon Krier, e programa museológico de José Cardim Ribeiro. Este novo espaço veicula os legados dos seus dois primordiais antecessores museais. Herdou, do mais remoto, o espírito humanista e cosmopolita que foi apanágio do Renascimento e, do mais recente, colheu o vínculo privilegiado ao meio que o rodeia e à população rural do Termo de Sintra.
Meta aparentemente impossível, essa de juntar e harmonizar coisas pretensamente contraditórias: as raízes “localistas” da instituição e a fertilidade e o vigor dos seus ramos que apontam decididamente para fora, mesmo para além-fronteiras.
Mas a contradição é mais aparente que real. Sintra beneficiou sempre, ao longo dos milénios, de uma ocupação humana muito intensa e diversificada, de origens e tradições culturais díspares, que aqui foram deixando não só os múltiplos testemunhos materiais da sua passagem e vivência, mas também o essencial da sua própria personalidade, num processo dinâmico e cumulativo que pouco a pouco veio a construir a singular riqueza patrimonial da região.
Finis terrae do Mundo Antigo, zona privilegiada de intercâmbio entre o Norte Atlântico e o Sul Mediterrânico, beneficiando ainda da extrema proximidade ao Estuário do Tejo e à grande metrópole que desde cedo nele se implantou, rica de uma paisagem multifacetada – desde a Serra Sagrada, emergindo do Oceano, às colinas que de Lisboa ao Termo de Mafra enquadram uma rica série de plataformas cerealíferas entre si divididas por profundos vales fluviais, fecundos em hortas e culturas de regadio -, a Região de Sintra abunda em monumentos e vestígios arqueológicos de todas as épocas, que não se apresentam como um todo sequencial monótono e previsível, mas sim como um mosaico polícromo e fértil dos mais variados motivos que inesperadamente se cruzam e fundem, como se os passados da Europa e do Mediterrâneo aqui viessem convergir e sincretizar-se.
Sintra, pois, amostragem legítima e plurifacetada de muitas arqueologias, de muitas histórias, de muitas tradições.
Eis como a própria realidade local é em si mesmo cosmopolita, facilitando-nos assim a tarefa de projectar a sua imagem para o exterior. As colecções conservadas no novo Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas constituem o corolário do que acabámos de afirmar.
As centenas de inscrições e monumentos lapidares romanos aqui reunidos, todos de origem regional, espelham no entanto, e par a par, influências estilísticas e populações de filiação itálica, norte africana, oriental, paleohispânica – entre outras menos frequentes. Os vigorosos lintéis de uma singular igreja visigótica – ou “visigotista”- latinizam nas inscrições que ostentam a matriz síria da sua expressão plástica. As largas dezenas de cabeceiras medievais justapõem a cruz ao signo-saimão, as rodas concêntricas do Mundo aos dois triângulos invertidos da hexalfa. Até os três únicos sarcófagos etruscos existentes em Portugal aqui vieram ter, fruto da eleição de Sintra como “paraíso perdido” do Romantismo, visto que de Itália passaram há mais de século e meio para os jardins de Monserrate, como simples ornatos de sabor antiquarista, e daí vieram recentemente para o novo Museu de Odrinhas, onde finalmente assumiram foros de peças arqueológicas de primeira grandeza no contexto museológico nacional.
Sarcófagos etruscos, monumentos romanos, lintéis visigóticos, túmulos medievais e outras lápides epigrafadas perfazem, no seu todo, aquilo que no Museu designamos como “O Livro de Pedra”. Efectivamente, estes textos, gravados em materiais que desafiam o tempo, são como que páginas arrancadas do enorme livro de pedra da História, que os deuses consentiram tivessem até nós chegado. A leitura, a decifração destes fragmentos permite-nos entrever o passado, como que observando as sombras enganadoras da caverna de Platão. À nossa imaginação compete completar a(s) realidade(s).
Mas “O Livro de Pedra” não esgota o que haverá para ver quando, mais tarde, todas as colecções estiverem expostas. Os materiais ora conservados nas reservas do Museu incluem numerosissímos testemunhos cerâmicos, de produção regional ou de importação, cobrindo toda a História dos povos que se fixaram na região de Sintra durante os últimos seis mil anos; diversificada utensilagem lítica, cujos inícios remontam a épocas muito anteriores, mas que se prolonga e complexifica ao longo dos séculos, dos milénios; artefactos metálicos, desde objectos do quotidiano às moedas cunhadas por reis, imperadores e califas; frágeis e variegados vidros, que o tempo irisou em dourados esplendores; para além de materiais orgânicos até hoje conservados, não só manufacturas em osso, marfim ou madeira, mas também – não esqueçamos – os próprios restos, cremados ou inumados, dos nossos antepassados.
São os contextos do dia a dia que se pretendem expor, numa inversão didáctica – e, convenhamos, mais natural – dos percursos museológicos habituais, pois que, tal como crianças que tentam pouco a pouco penetrar na profundidade do Tempo, caminharemos do próximo-passado em direcção às épocas mais remotas, mergulhando progressivamente nas realidades que mais se afastam do nosso próprio quotidiano. A este percurso chamaremos “O Claustro do Tempo”.
Poderíamos agora assinalar várias outras zonas existentes no Museu, designando-as como complementares, ou “de apoio”. Nada de mais errado, porquanto o novo Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas está concebido como um todo, alicerçado em alguns princípios muito simples e objectivos que pretendemos venham a constituir-se no seu verdadeiro genius loci: a Tolerância; o Humanismo; a Harmonia dos Contrários; a Pluralidade Cultural; o Conhecimento, a Conservação e a Passagem do Legado da Tradição; o Otium Fecundum.
Do mesmo modo que “O Livro de Pedra” e que “O Claustro do Tempo”, também a grande Biblioteca especializada – mas inteiramente pública -, também o Auditório nas suas diferentes potencialidades, também as Exposições Temporárias, a Livraria, a “Ágora” em torno da qual se distribuem os vários edifícios do Museu, a própria escolha da linguagem arquitectónica – que talvez possa ser legitimamente designada como assumida expressão de um Classicismo “despojado” -, sem esquecer a Ermida de São Miguel de Odrinhas – velha como a Nacionalidade – e as ruínas da villa romana epónima, militam, no seu conjunto e como realidade indivisível, para dar voz e coerência aos princípios que nortearam a concepção deste espaço. Para animarem – de anima, “alma”, entenda-se… – o seu genius loci.
O Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, um projecto arrojado? Não! Uma realidade arrojada! Concebida à proporção da riqueza patrimonial de Sintra e dos parâmetros internacionais por onde forçosamente se terão de pautar todas as iniciativas congéneres que pretendam validamente ultrapassar as fronteiras do localismo e das gerações imediatas.